Uma doença sexualmente transmissível, que hoje tem tratamento, mas já vitimou muitas pessoas no passado. Muitas delas famosas, a exemplo do cantor Renato Russo, intérprete da canção: “Os bons morem jovens”. A década de 1980 ficou conhecida por ter registrado um surto de casos de Aids no Brasil. Naquela época, a doença era vista com uma verdadeira sentença de morte, onde imperava a desinformação, motor ideal para outra situação, ainda mais preocupante, o preconceito. Inclusive, a música Ideologia, do cantor Cazuza, foi escrita quando ele fazia tratamento para Aids, nos Estados Unidos.
Para resguardar a privacidade de nossos entrevistados portadores do HIV, os nomes utilizados nesta reportagem são fictícios. Entre eles, está um contemporâneo de Cazuza, o arquiteto Antônio, de 58 anos. ele revela que sofreu muito os efeitos deste preconceito. Uma situação que fazia as pessoas terem medo até de tocar ou compartilhar talheres com pessoas soro positivo. Ele explica que contraiu o vírus, em 1999, quando vivia uma relação estável, contrariando assim, o senso comum e que associava à doença a uma vida desregrada.
Até porque, a Aids surgiu em meio a uma carga dramática, que envolvia sexo e drogas. Além de ser associada a uma vida desregrada, a doença também era vista com uma espécie de punição, principalmente, pelos primeiros casos públicos terem surgido na comunidade gay e matado artista, assumidamente, homossexuais. Antônio confirma a informação e ainda diz que precisou lidar com os próprios fantasmas e o medo da morte. Ele convive com o vírus há 25 anos e afirma que as novas gerações não conheceram a real face da Aids que, literalmente, definhava as vítimas.
Considerada uma das maiores epidemias já registradas na humanidade, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Sida) foi registrada, pela primeira vez, nos Estados Unidos, em 1981. Porém, oficialmente, o vírus HIV foi descoberto, apenas dois anos depois.
Na época, conforme a médica infectologista Andrea Dal Bó, a doença causou muito pânico. Até porque, a descoberta do vírus só aconteceu em 1983. Segundo a médica, 40 anos depois, o HIV ainda hoje preocupa, ante o diagnóstico crescente de novos casos, principalmente, entre jovens e pelo não uso do preservativo nas relações sexuais.
No entanto, ela também pondera que o tratamento foi algo que avançou, e muito, neste período. Além de diminuir o número comprimidos ingeridos, diariamente, pelos pacientes, os novos fármacos já não causam tantos efeitos colaterais, a exemplo de náuseas, dores de cabeça e fadiga, o que comprometia a rotina das pessoas.
A infectologista também indica que o vírus não é mais algo que determine o tempo de vida de uma pessoa. Até porque, nem todo mundo que é portador do vírus, necessariamente, irá desenvolver a Aids, último estágio da infecção, se não tratada.
Outro cantor, vítima da doença foi o vocalista do Queen, Freddie Mercury. Ele morreu em 1991, e mal ficava de pé quando gravou o último hit do Queen: “The Show Must Go On”. A música é uma autêntica e comovente despedida do cantor para os fãs e serve de alerta, pois a Aids ainda mata. O diagnóstico precoce determinante para garantir a qualidade de vida dos pacientes.
Quem sabe muito bem disso é o estudante de biomedicina, Mauro, de 29 anos. Ele conta que sempre teve consciência da gravidade da doença e, por isso, fazia uso constante de preservativos nas relações sexuais. Ainda assim, certa ocasião, a “camisinha estourou”; e mesmo procurando ajuda, em tempo hábil, a fim de realizar a profilaxia pós-exposição, o vírus foi mais ligeiro e contaminou ele, que convive com HIV há quase três anos.
O rapaz conta que o apoio irrestrito da família foi sempre um diferencial na vida dele, inclusive, neste momento adverso. No entanto, o mesmo não aconteceu no ambiente de trabalho. Mauro teve Covid, logo após descobrir ser portador do HIV. Ele acabou sendo demitido, ao retornar ao trabalho, depois do período de afastamento. Segundo o rapaz, a situação teria sido fruto de preconceito, e o levou a processar a empresa.
“o pior não é lidar com o HIV, mas com o estigma que os portadores do vírus ainda carregam”
Na opinião de Mauro, o pior não é lidar com o HIV, mas com o estigma que os portadores do vírus ainda carregam. Conforme o estudante, a falta de diálogo nas famílias sobre a questão, inclusive, com relação ao uso de preservativos, é algo que precisa mudar.
Dados divulgados pela Secretaria da Saúde de Caxias (SMS) corroboram a informação. O Boletim Epidemiológico HIV/Aids aponta que cerca de 2,7 mil pessoas convivem com o vírus HIV no Município.
A gerente do Serviço Municipal de Infectologia, Grasiela Gabriel, explica que essa contaminação é maior entre homens na faixa etária de 20 até 29 anos. Eles representariam 70% dos novos casos e, infelizmente, são diagnosticados de forma tardia.
Ela também explica que a pasta desenvolve diversas ações para a prevenção da doença, a exemplo de: testes rápidos, terapia antirretroviral e profilaxia para a pós (PEP Sexual) e pré-exposição Sexual ao HIV (PrEP). O Município ainda oferece o Serviço de Assistência Especializada em HIV/AIDS (SAE), que realiza ações de assistência, prevenção e tratamento às pessoas vivendo com HIV/AIDS e conta com uma equipe interdisciplinar de saúde. Na esteira disso, o Caxias conquistou, recentemente, uma certificação nacional quanto à eliminação da transmissão do HIV de mãe para filho.
No Brasil, a propagação do vírus também foi alavancada pela ausência de uma legislação que regulamentasse a doação de sangue. Em 1988, a Constituição Federal passou a exigir essa fiscalização (Lei do Sangue). Porém, antes disso, qualquer um poderia doar, sem ser testado para HIV, o que foi devastador para a propagação do vírus.
O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, criador da Ação da Cidadania Contra a Miséria e Pela Vida, foi uma dessas vítimas. Ele morreu em 1997, em conseqüência de uma hepatite C, adquirida via transfusão de sangue, assim como, o vírus HIV. A doença ainda vitimou os dois irmãos dele, o cartunista Henrique de Souza Filho, o Henfil, que morreu em 1988, assim como, o músico, Chico Mário. Eles eram hemofílicos e constantemente, precisavam se submeter a transfusões de sangue.
Já o vocalista da banda Legião Urbana, Renato Russo, é outra personalidade pública, que também era portador do vírus HIV. Quando adoeceu, ele escreveu a canção “A Via Láctea, na qual retratava a dor de conviver com a doença, principalmente, por conta do preconceito.
O preconceito, ainda hoje, assusta a aposentada Luzia, de 58 anos. Inclusive, ela prefere ser discreta com relação a ser portadora do vírus. A aposentada conta que contraiu o HIV do namorado, há aproximadamente 10 anos. Ainda assim, ela encara a situação com leveza e diz que a saúde vai bem, tanto que o vírus está indetectável, graças ao uso correto da medicação.
Na opinião de Luiza, portadores de diabetes e, mesmo, de pressão alta, às vezes, apresentam sintomas muito mais graves do que os portadores do HIV, principalmente, quando fazem uso correto da medicação, que é disponibilizada gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Em 1992, o cantor Elton John, lançou a música “The Last Song”,que acabou se tornou um dos maiores símbolos da luta contra a AIDS. Na canção, ele se coloca no lugar de um homem à beira da morte e faz o seguinte desabafo: “tão leve quanto uma palha e tão frágil como um pássaro”.
A canção ainda hoje é atual, principalmente, se analisada sob a perspectiva dos dados apresentados, nesta quinta-feira (30), pelo Ministério da Saúde. Conforme o boletim epidemiológico HIV/aids, no mundo, cerca de 9, 2 milhões de pessoas vivem com o HIV. No Brasil, esse número é de, aproximadamente, de 1 milhão de pessoas.
Justamente para vencer o preconceito e conscientizar as pessoas sobre prevenção, tratamento e diagnóstico precoce é que foi criado o Dia Mundial de Luta Contra a Aids, que foi celebrado nesta sexta-feira (1º). A data foi instituída pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
O primeiro single do álbum Older, de George Michael, foi inspirado no ex-namorado do artista, o brasileiro Anselmo Feleppa. Ele também morreu, em 1993, em decorrência da Aids. No ano passado, a doença continua matando, ainda que passado 30 anos. O país registrou mais de 10 mil mortes. Deste total, cerca de 61% eram pessoas negras. Por conta disso, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) definiu três metas globais, a serem alcançadas até 2030, a fim de que a Aids deixe de ser uma ameaça à saúde pública. Isso porque, a cada minuto, uma vida é perdida para a Aids.
Portanto, ações de conscientização são fundamentais para divulgar a importância da prevenção e do diagnóstico precoce. Mas, também servem para veicular mensagens de esperança e solidariedade, numa luta que deve ser contra a doença e nunca contra os portadores do HIV.
Essa reportagem encerra ao som de uma música composta por Gonzaguinha. Justamente, para levar uma mensagem de esperança, principalmente, quanto ao avanço da ciência, visando a descoberta de uma cura para a Aids. Além disso, para incentivar a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, alinhada a uma cultura de paz, onde o respeito é a chave que abre todas as portas…“Viver e não ter a vergonha/De ser feliz/Cantar, e cantar, e cantar/A beleza de ser um eterno aprendiz/Ah, meu Deus!/Eu sei, eu sei/Que a vida devia ser bem melhor/E será!/Mas isso não impede/Que eu repita/É bonita, é bonita.”